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Dia da Justiça: o paradoxo de um sistema que ainda falha onde mais deveria proteger

Por Mariana Tripode


Hoje, no Dia da Justiça, não me interessa reproduzir discursos celebratórios. Interessa-me, sim, evidenciar um paradoxo que atravessa diariamente as mulheres que chegam ao sistema: a Justiça se afirma imparcial, mas opera marcada por vieses estruturais que continuam produzindo desigualdade e sofrimento.


No Brasil, a tradição judicial foi construída sob parâmetros masculinos, brancos e heteronormativos, parâmetros que moldaram não apenas o conteúdo das decisões, mas as próprias categorias com as quais interpretamos conflitos familiares, violência doméstica e disputas parentais. A promessa de neutralidade, tão repetida nos fóruns, tem servido menos como garantia e mais como cortina de fumaça para práticas que deslegitimam a palavra das mulheres e infantilizam suas experiências.


E não falo aqui de raridades. Falo de rotinas, mães que têm sua credibilidade questionada por denunciar violência; crianças que não são ouvidas com a devida proteção; estudos psicossociais que desconsideram contextos de medo e sobrevivência; decisões que impõem guarda compartilhada como se o cuidado fosse simétrico por decreto; e a insistente utilização da Lei de Alienação Parental como ferramenta de silenciamento e punição. O sistema judiciário insiste em operar como se a desigualdade fosse exceção, quando ela é o ponto de partida.


A Justiça, tal como está, ainda reage mal às mulheres porque foi desenhada para não as reconhecer como sujeitas plenas de direitos. E é justamente por isso que o Dia da Justiça, para mim, é menos uma comemoração e mais um convite ao desconforto institucional. Não há transformação possível se continuarmos acomodados na ideia de que basta aplicar a lei de forma "técnica" para que a igualdade aconteça. Sem perspectiva de gênero, não existe técnica suficiente para corrigir uma estrutura que historicamente normalizou a violência.


Na Escola Brasileira de Direitos das Mulheres, temos apostado em outro caminho: o da inovação crítica, que olha para o sistema não como algo pronto, mas como um campo de disputa política. Formamos profissionais para compreender que aplicar a lei é insuficiente quando a própria leitura da realidade está filtrada por lentes patriarcais. Criamos estratégias para mostrar que cada decisão judicial é um ato de poder e que esse poder precisa ser exercido com responsabilidade, rigor e consciência das desigualdades que atravessam corpos, mentes e territórios.


A Justiça do futuro não será construída apenas com mais tecnologia ou mais produtividade. Será construída com coragem institucional, coragem para rever práticas, admitir omissões, enfrentar resistências internas e romper com a complacência diante da violência de gênero.


Hoje, no Dia da Justiça, reitero aquilo que tenho aprendido nas trincheiras do Direito de que a verdadeira justiça não teme reconhecer seus próprios limites, teme perpetuá-los. E enquanto esses limites seguirem recaindo sempre sobre as mesmas mulheres, temos a responsabilidade ética e política de tensionar, incomodar e transformar.


A Justiça não precisa ser celebrada. Precisa ser reinventada.


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