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Foram queimadas por saber demais: a perseguição de mulheres acusadas de “bruxaria” e a consolidação do patriarcado moderno

Uma análise histórica-crítica dos mecanismos de controle de gênero, saberes femininos e poder institucional entre os séculos XV e XVIII

Por: Mariana Tripode




Entre os séculos XV e XVIII, a Europa assistiu a uma das mais sistemáticas perseguições contra mulheres de que se tem registro. Estima-se que cerca de 50 a 80 mil pessoas tenham sido condenadas à morte por suposta prática de feitiçaria, sendo aproximadamente 80% delas mulheres¹. Esse fenômeno não pode ser compreendido apenas como histeria religiosa ou superstição coletiva, mas como mecanismo de regulação social e controle de gênero em um contexto de consolidação do poder patriarcal, da Igreja e do Estado moderno.


A publicação do Malleus Maleficarum, em 1487, pelos inquisidores Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, institucionalizou o discurso da caça às bruxas. O tratado descrevia as mulheres como frágeis na fé, inclinadas à luxúria e naturalmente propensas à aliança com o demônio². A partir dessa construção teológica, o feminino passou a ser representado como risco espiritual e político. As práticas tradicionais de cuidado, como o uso de ervas, o acompanhamento de partos e os saberes populares sobre o corpo e a natureza, foram reinterpretadas como ameaças à ordem moral e eclesiástica³.


A perseguição às chamadas “bruxas” teve caráter disciplinador pois visava eliminar ou reeducar mulheres que viviam à margem do modelo doméstico ou que detinham autonomia econômica e intelectual. Estudos de Silvia Federici apontam que a caça às bruxas foi funcional à transição para o capitalismo, ao expropriar das mulheres os saberes ligados à reprodução e à medicina tradicional, reforçando a divisão sexual do trabalho e a subordinação do corpo feminino ao controle masculino⁴. Paralelamente, a consolidação das instituições jurídicas e estatais transformou a perseguição religiosa em política pública de repressão moral⁵.


Os julgamentos, realizados tanto por tribunais eclesiásticos quanto seculares, revelam que a acusação de bruxaria servia a múltiplos interesses como disputas de terra, rivalidades comunitárias, vinganças familiares e purificação moral das vilas. O elemento comum era o gênero. Ser mulher, idosa, viúva ou pobre aumentava significativamente o risco de ser denunciada⁶. Como observam Purkiss e Rowlands, as fogueiras funcionavam como pedagogia do medo: um espetáculo de punição voltado à normalização da conduta feminina⁷.


Embora a intensidade das perseguições tenha diminuído após o século XVIII, o legado simbólico da bruxa permaneceu. A mulher que desafia hierarquias, fala alto, exerce poder ou expressa sexualidade ainda é, com frequência, associada ao perigo, à desordem ou à insanidade. Essa continuidade histórica é reconhecida por estudiosas do feminismo jurídico como expressão de violência institucional de gênero: uma estrutura de deslegitimação e silenciamento que se atualiza em novas formas jurídicas, corporativas e midiáticas⁸.


Em diversas partes do mundo, iniciativas recentes de reabilitação das acusadas, como as leis de perdão póstumo aprovadas na Escócia e nos Estados Unidos, buscam reconhecer a injustiça histórica e transformar as bruxas em símbolos de resistência feminina⁹. No campo do Direito, essa memória impõe o desafio de revisitar criticamente os modos como o sistema ainda reproduz práticas inquisitórias, especialmente nos processos em que mulheres continuam sendo julgadas por exercerem autonomia sobre o corpo, a maternidade ou o pensamento.


A história das mulheres mortas como bruxas revela mais do que o passado de uma intolerância religiosa, expõe a lógica persistente de um sistema que teme o conhecimento feminino. Forjar uma justiça com perspectiva de gênero exige reconhecer essas raízes históricas, para que nenhuma mulher — por saber, falar ou resistir — volte a ser queimada, ainda que simbolicamente.


Notas

  1. Levack, Brian P. The Witch-Hunt in Early Modern Europe. London: Longman, 2006.

  2. Kramer, Heinrich; Sprenger, Jakob. Malleus Maleficarum. 1487. Tradução: Montague Summers, 1928.

  3. Rowlands, Alison. “Witchcraft and Gender in Early Modern Europe.” In The Oxford Handbook of Witchcraft in Early Modern Europe and Colonial America. Oxford University Press, 2013.

  4. Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

  5. Monter, E. William. Witchcraft in France and Switzerland: The Borderlands During the Reformation. Ithaca: Cornell University Press, 1976.

  6. Barstow, Anne L. Witchcraze: A New History of the European Witch Hunts. San Francisco: Pandora, 1994.

  7. Purkiss, Diane. The Witch in History: Early Modern and Twentieth-Century Representations. London: Routledge, 1996.

  8. MacKinnon, Catharine A. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989.

  9. The Guardian. “Scotland Issues Posthumous Pardons for Women Executed as Witches.” 2022.

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