O que é feminismo decolonial? Françoise Vergès explica em novo livro.

Não basta ser feminista. Tem que ser antirracista. Não basta ser antirracista. Tem que ser feminista. O auge da segunda onda do feminismo, que começou na década de 1960 nos Estados Unidos e se espalhou pelo mundo, coincide também com o fortalecimento do Movimento dos Direitos Civis dos negros nos Estados Unidos, que consistia em conseguir reformas visando abolir a discriminação e a segregação racial no país.
No entanto, apesar de ambos os grupos lutarem por uma hegemonia até hoje vigente e por um mundo mais igualitário, os discursos dos movimentos que levavam tantos às ruas não dialogavam e as mulheres negras sempre ficaram na periferia entre seus companheiros de marcha. Líderes do Black Power eram machistas e as feministas aclamavam por conquistas num mundo ainda eurocêntrico. É o que Françoise Vergès chama de "feminismo civilizatório", em seu livro recém lançado pela editora UBU, Um feminismo decolonial.
O feminismo civilizatório, de acordo com a autora, valida políticas imperialistas sobre os países periféricos, gerando outro tipo de opressão - não somente a masculina, mas de um povo sobre outro. E, é claro, nesse processo são as mulheres dos grupos dominados que sempre sofrem mais. O feminismo decolonial, portanto, opõe-se ao feminismo liberal cujas pautas se encerram em demandas relativas à liberação sexual e à igualdade no mercado de trabalho, descodirerando as desigualdades entre as próprias mulheres e reafirmando ideologias racistas de escravatura e colonialismo.
Apesar da autora ser francesa, o livro tem uma introdução bastante interessante que atualiza a discussão para o Brasil. Ao longo da leitura é possível compreender também que o feminismo francês proposto por Vergès pode nos inteirar do pensamento e das lutas das mulheres de diferentes continentes, especialmente as vindas das chamadas epistemologias do Sul, que não podem ser confiadas a fronteiras geográficas criadas pelo mundo eurocêntrico. Ao pensarmos na França, por exemplo, este movimento prioriza defender não apenas as mulheres nascidas no país e sim todas as imigrantes ou refugiadas, além daquelas que vieram de colônias e possuem cidadania francesa, mas não escapam da humilhação por causa da cor da pele ou feições do rosto.
Outro ponto interessante e bastante atual que Vergès coloca do mundo europeu que se apropriou, sem hesitar, de saberes, estéticas, técnicas e filosofias de povos que ele subjugava e cuja civilização ele negava. O feminismo decolonial se inscreve no amplo movimento de reapropriação cientifica e filosófica que revisa a narrativa européia do mundo.
Um exemplo bastante claro deste discurso está na obra da artista brasileira Rosana Paulino e nos esforços de repensar as narrativas da própria história da arte. Há nos últimos meses, depois da intensificação movimentos #blacklivesmatter, o mundo das artes foi tomado por um intenso combate contra a politica de roubo justificado em museus do mundo inteiro - esta semana, por exemplo, o governo francês deu os primeiros passos legais para restituir oficialmente 26 itens ao Benin e um ao Senegal que hoje “pertencem" aos acervos de museus parisienses - e também reinvidicam, em diversos países, alterações em estátuas públicas de personalidades que incentivaram o sistema escravocrata.
A autora ressalta que a colonização pode ter acabado em muitos países, mas isso não significa que o colonialismo tenha desaparecido e que os movimentos feministas precisam assumir também essa bandeira. Ela explica, inclusive, que a mulher branca foi literalmente uma invasão da colônia: os primeiros naturalistas se basearam na diferença sexual para elaborar o conceito de “raça”. E protesta: “Elas precisam entender compreender o cansaço sentido sempre que é necessário educá-las acerca da própria história, mesmo que uma vasta biblioteca sobre estes temas esteja disponível. Por que elas esperam para ser educadas?"
No Brasil, os abusos contra mulheres negras ficaram ainda mais claros durante a pandemia: por aqui o trabalho doméstico (na maioria dos casos feitos por mulheres negras e com baixa remuneração) garante o pleno funcionamento engrenagem do país...e também expõe nossa herança colonial revelando um nível absurdo de racismo estrutural. Como a autora coloca, essas mulheres são essenciais para o funcionamento do patriarcado brasileiro, cujo trabalho invisível organiza e cuida da nossa sociedade e dos nossos filhos. Elas "abrem" as cidades todos os dias, limpando os espaços que precisam estar perfeitos para o funcionamento do patriarcado e capitalismo neoliberal.
Enquanto isso, um segundo grupo de mulheres negras seguem para as casas de classe média para fazer todo tipo de serviço enquanto a mulher branca sai de casa para fazer aula de yoga e meditação ou academia e, em seguida, para lutar pelo seu tão almejado lugar no mercado de trabalho. Muitas dessas mulheres negras viajam longas jornadas diariamente e desempenham um trabalho perigoso, mal pago e considerado não qualificado. Nenhuma novidade, certo? Esse trabalho invisível parece indispensável, pois durante o isolamento social para evitar o alastramento da pandemia do COVID-19, muitas dessas mulheres brancas seguiram obrigando as negras a ir até suas casas para trabalhar colocando a vida delas em risco em transportes públicos lotados. Mão de obra imprescindível, vida descartável?
Definir-se feminista consiste no desafio de quem quer revolucionar a prática cotidiana; não é apenas se servir de imagens, discursos e frases de efeito palatáveis ao capitalismo e absorvidos pela publicidade da sociedade de consumo. Não é moda, é rever todas as suas atitudes e decisões diariamente. Vale começar pela leitura do livro Um feminismo decolonial.
Fonte: Vogue