Françoise Vergès: 'A sociedade não pode funcionar nas costas das mulheres negras'

A leveza com que Françoise Vergès conduz o papo pelo Zoom em nada se assemelha ao incendiário discurso de seu livro-manifesto Um Feminismo Decolonial (Ubu, 144 págs., R$ 54,90), obra na qual a cientista social detona o que chama de “feminismo civilizatório”. Em livre interpretação, esse seria o ativismo praticado principalmente por mulheres brancas cuja ideologia, segundo Françoise, teria sido cooptada por governos de extrema-direita e neoliberais, que permitem um movimento desde que seja “light”, centrado na defesa da igualdade de gênero, sem, no entanto, se debruçar sobre os problemas daquelas que sofrem as consequências do racismo, do imperialismo e do capitalismo. Na berlinda estariam as mulheres negras, até hoje vivendo sob os efeitos terríveis do período de escravidão, mas também indígenas, transexuais, queers, profissionais do sexo, migrantes e refugiadas.

Nascida na França e criada na ilha de Reunião, departamento sob domínio francês no Oceano Índico – onde seu pai atuou como político do Partido Comunista –, Françoise cresceu numa família feminista e militante, o que lhe deu, por exemplo, informações sobre a ditadura brasileira ainda na infância. Autora de diversos livros, é ph.D. pela Universidade de Berkeley, na Califórnia; foi presidente do Comitê para a Memória e a História da Escravidão; escreveu roteiros de filmes e coordenou um tour sobre escravidão e invisibilidade humana no Museu do Louvre, em Paris. Entre seus temas de interesse, está o trabalho de empregadas domésticas e profissionais de limpeza, em geral mulheres negras que, segundo ela, carregam em suas costas a sociedade capitalista. A seguir, trechos da conversa.
Marie Claire Em sua opinião, o que é ser feminista em 2020? Françoise Vergès É ser antirracista, anticapitalista, anti-imperialista e antipatriarcal. A questão da igualdade entre os sexos, da equidade salarial ou, por exemplo, de ter 50% de homens e 50% de mulheres concorrendo a cargos eletivos não me parece ser uma revolução. O feminismo é a liberação de toda a sociedade e não somente do estrato que chamamos de “mulheres”, porque, mesmo dentro dessa categoria, existem aquelas que não são totalmente parte dela. Uma mulher negra, queer ou trans não é completamente uma mulher aos olhos da supremacia branca. Por isso ser feminista é também questionar essas divisões consideradas “naturais”. É aspirar por uma revolução da sociedade a partir das pessoas mais frágeis, invisibilizadas e precarizadas pelo Estado. No Brasil, por exemplo, as mulheres negras que trabalham como empregadas domésticas são as mais vulneráveis e, mesmo que não se autodenominem, a luta delas é feminista. Penso também nas jovens brasileiras, argentinas ou chilenas que protestam contra o feminicídio, tratando essa questão como consequência do neoliberalismo, dos regimes autoritários e neofascistas. O feminicídio faz parte de um problema que inclui os direitos dos povos indígenas à terra, por exemplo. Sempre me refiro à América do Sul e à América Central porque são os lugares onde aconteceram as maiores e mais fortes manifestações feministas recentes. Quando as mulheres cantam o refrão de Un Violador en Tu Camino, criado pelo coletivo feminista chileno Las Tesis, penso que o estuprador é o Estado, é a Justiça.
MC A senhora acredita que as latino-americanas são a vanguarda do movimento feminista no mundo atual?
FV Elas estão à frente, mas não gosto do termo vanguarda, porque há muitas coisas que ocorrem e não temos conhecimento. Penso, por exemplo, nas mulheres do campo nos Andes, que brigam contra a construção de barragens, o que é algo extraordinário. As indígenas também podem ter menos acesso à divulgação, mas estão na luta. Acredito que, na ressurgência do movimento hoje, as feministas do hemisfério sul são as mais fortes. Houve um período em que as ativistas do hemisfério norte obtiveram mais sucesso em ser ouvidas, nos anos 1980, 90, época em que não conhecíamos as feministas do que chamamos de sul global.
MC Qual a história do feminismo decolonial?
FV Se pudermos pensar num início do movimento, seria a luta das escravizadas. Mulheres indígenas também foram muito maltratadas, mas a mulher negra foi consumida como um capital. Seus corpos eram propriedade privada e o estupro, uma forma de acumulação, pois utilizado para criar um capital: a criança que vai nascer. Isso é algo que pesa ainda hoje na saúde das mulheres negras, na maternidade e na paternidade também, porque os escravizados não tinham direito a uma família. Um pai nunca era um pai. Muitos desses homens eram transformados em objetos sexuais para reproduzir. Foi uma organização terrível, em que o direito, o Estado, a Igreja, todos a apoiavam. A escravidão era tão natural quanto o dia e a noite, mas os escravizados diziam “não”. Essa recusa da normalização é a matriz do feminismo decolonial.
MC O que diferencia o feminismo decolonial de vertentes como o interseccional, que considera gênero, raça e classe? FV O feminismo decolonial agrega mais noções, questionando, por exemplo, a ideia de gênero. O fato de existirem dois gêneros binários opostos é uma invenção do Ocidente, pois, em outras sociedades, essa relação era mais fluida. O feminismo decolonial interroga também a noção de raça e classe como se construíram, como se colocam questões queer, trans, e utiliza uma metodologia multidimensional, quer dizer, se pergunta o tempo todo: “Estou mesmo considerando todas as mulheres?”. No caso das empregadas domésticas, por exemplo, que me interessam muito, o problema não se restringe ao fato de elas serem mal pagas, mas também ao transporte que devem usar, aos produtos químicos a que estão expostas, ao fato de que elas têm até quatro empregos para chegar a um salário adequado etc. É importante o feminismo interseccional, mas não acho que devemos nos fechar numa única escola.
MC A senhora diz que o movimento feminista foi cooptado pela extrema-direita e por neoliberais para criar políticas que oprimem as mulheres. Como isso ocorre? FV Há 15 anos, as mulheres de extrema-direita jamais se diriam feministas. Nos anos 2010, 2020, todo mundo começou a se dizer feminista. Mesmo nas grandes companhias, capitalistas passaram a se dizer ativistas. Me pergunto: como é possível uma noção que antes era praticamente um insulto se tornar algo assim? Há inúmeros fatos que levaram a isso. Em resumo, o decênio do direito das mulheres decretado pela ONU em 1975 foi importante para pacificar temas como a liberação nacional, a situação das mulheres negras nos Estados Unidos, contra a ditadura no Chile etc. Nos anos 1980, organismos internacionais criaram programas de ajuste que incluíam os direitos das mulheres. Mas esse discurso se tornou pacificador, aceitável pela direita, pelos conservadores, pela Igreja. O movimento, no entanto, continuou e, quando se radicalizou, a partir de 2015, e passou a provocar medo. Voltamos a ter conservadoras dizendo “isso não é o feminismo”, “elas são radicais”, “não gostam de homens” etc., com o objetivo de retomar o controle. As feministas do hemisfério sul são, portanto, a transformação, pois elas compreendem que, enquanto existirem o racismo e o capitalismo, não existirá a liberação das mulheres.
MC A senhora diz não gostar da expressão “quarta onda” do feminismo. Por quê?
FV Acho um pouco redutor, pois sempre devemos alguma coisa à geração anterior, mesmo que a gente não se lembre. Prefiro a ideia de um movimento constante, às vezes totalmente subterrâneo, como um rio que vai correndo e desaparece, ressurge, forma pequenos redemoinhos, deixa ilhas atrás de si e volta a seguir seu fluxo... Amo a ideia de circulação constante, que leva uma jovem francesa a ler Djamila Ribeiro sem nunca ter colocado os pés no Brasil. Sou muita atenta à circulação sul/sul e não somente norte/sul, porque, por pensarmos no que é produzido no hemisfério norte, desvalorizamos o que vem da outra parte do mundo. Para mim, essa história de “onda” é uma noção ocidental, do norte, que não deve ser considerada pelas mulheres do sul, que precisam se citar, se ler e criar solidariedade entre si.
MC Em sua opinião, o que levou a essa explosão de protestos liderados por mulheres no mundo todo?
FV Durante todos esse anos, havia coisas que aconteciam, como as mobilizações de povos indígenas, as discussões nas universidades sobre colonização ou temas queer etc. As conversas circulavam. Além disso, o fim de ditaduras como a do Brasil trouxe esperança ao eleger pessoas como [o ex-presidente] Lula, por exemplo. Tudo isso é resultado dos movimentos dos anos 60, junto a livros, documentários e outras pequenas coisas que se acumularam ao longo das décadas e permitiram essa ressurgência. O movimento #MeToo, nos Estados Unidos, foi lançado por uma jovem mulher negra, antes que grandes atrizes aderissem a ele, tornando-o conhecido no mundo todo. Essa ressurgência, então, é resultado de diversas coisas que ocorreram ao mesmo tempo, incluindo o fato de que, hoje, mais mulheres de países do hemisfério sul têm acesso à educação, se tornam escritoras, jornalistas, diretoras de cinema... É um quadro muito diferente do que ocorria nos anos 80, quando poucos nomes eram conhecidos. Agora, temos milhares, o que contribui para essa movimentação cheia de esperança de hoje.
MC Quando o movimento #MeToo eclodiu, um grupo de intelectuais e feministas francesas, incluindo a atriz Catherine Deneuve, criou um manifesto em defesa dos homens. Em seu livro, a senhora fala sobre as feministas civilizatórias. Seriam elas as mulheres que assinaram esse manifesto?
FV Sim. Afirmar que você não se importa de ter sua bunda tocada por alguém no metrô, como se isso não tivesse nenhuma importância, é o mesmo que dizer que essa maneira de elas serem deve ser a de todo mundo. Essa posição universalista e civilizadora afirma: “Nós sabemos o que é melhor e vamos lhes dizer o que é certo ou errado e o que vocês devem fazer”. É isso o que chamo de feminismo civilizatório, que diz o que é bom para nós sem considerar a realidade de todas as mulheres. Esse manifesto, que reuniu dezenas de burguesas, nos levou a pensar: se é essa a preocupação delas, em que mundo vivem?
MC A França é conhecida como um dos berços do feminismo. O país onde nasceram Simone de Beauvoir, Simone Veil e onde as mulheres têm direito ao aborto, por exemplo. No entanto, principalmente no último ano, as manchetes dos jornais estampam casos terríveis de feminicídio. Por que só agora se fala sobre isso?
FV Isso só acontece graças aos grupos que estão em luta, porque tivemos muitos escândalos de assédio que não deram em nada, com políticos, por exemplo. Mas como eles começaram a se repetir, muitas mulheres se organizaram para realizar protestos mais radicais, estampando o rosto dos agressores nas ruas, fazendo colagens etc. Isso levou os jornalistas a começarem a investigar os casos e a desvendar os feminicídios. Mas isso só acontece porque, por trás, existe uma enorme mobilização. Durante muito tempo, era como se não existisse esse problema. Afinal, se trata da França [risos].
MC A senhora faz uma crítica ao livro Sejamos Todos Feministas, da escritora Chimamanda Ngozi Adichie. Por quê?
FV Quando Chimamanda fala “sejamos todos feministas”, isso não é possível. Somente se esse “feministas” se restringir ao fato de que devemos respeitar as mulheres e defender a igualdade de gênero. Para mim, ser feminista é mais que isso. É colocar em prática uma liberação da sociedade, não simplesmente afirmar que as mulheres devem ser respeitadas pelos homens. Isso é banal. Tanto é que, rapidamente, se transformou num slogan. Podemos usar a camiseta We Should All Be Feminists (sejamos todos feministas) sem causar nenhum dano ao capitalismo. Para mim, é o equivalente a dizer “não sou racista”. Ok, mas o que você faz a cada dia contra o racismo? No seu trabalho, você já se deu conta de que as mulheres negras não recebem promoção? Quando digo “sejamos todos feministas”, o que isso significa? O que você faz para que o mundo mude? Ser feminista é correr riscos na vida pessoal e em sociedade. Não é só uma questão de opinião.
MC Um tema central de suas pesquisas são as condições das empregadas domésticas. Qual a responsabilidade das feministas brancas para mudar a situação de trabalho dessas mulheres? FV Na Europa, as feministas brancas questionam muito o trabalho em casa no sentido da divisão de tarefas: “Meu marido não me ajuda, ele deveria lavar a louça”. Isso não leva em consideração a estrutura da sociedade. Na França, burguesas também têm empregadas domésticas: são mulheres superexploradas, a quem podemos pedir para nos esperarem até as 20h, sem considerar que elas moram longe, por exemplo. O que me interessa na questão das empregadas domésticas é que, para além de ser um resquício da escravidão, com mulheres negras trabalhando para as brancas, persiste o estereótipo de que elas são mais duras para a função, enquanto as brancas não suportam o peso, o calor etc. Há uma construção de fragilidade, de um lado, e de uma mulher sólida, do outro, que tudo pode suportar. A segunda questão é que a vida cotidiana da mulher branca é confortável às custas das empregadas. Graças a elas, elas podem sair com as amigas, fazer ioga, ir às compras, ao esteticista. A mulher branca representa a feminilidade graças ao fato de que pode contar com uma mulher negra exausta que limpa o museu, a loja e o restaurante que ela frequenta, leva seu cachorro para passear etc. Ao mesmo tempo, as mulheres brancas se inspiram nas negras, no estilo delas, e se apropriam do jeito que elas se vestem, por exemplo. É como um canibalismo. As feministas que não consideram isso como questão central são burguesas, porque ser feminista não se resume a dividir as tarefas com o marido. É preciso romper com essa estrutura. A sociedade não pode colocar seu funcionamento nas costas das mulheres negras. MC Em seu livro, Um Feminismo Decolonial, a senhora criou um prefácio especialmente para o Brasil e, ao longo dos capítulos, menciona o país ou brasileiras como a deputada Marielle Franco. Qual sua relação com o país e as feministas brasileiras?
FV Infelizmente, nunca estive no Brasil, mas cresci numa família anticolonialista e feminista, e, em casa, ouvia falar de tudo, inclusive sobre a ditadura brasileira. Não foi algo que conheci depois, por interesse. Meus pais liam muito, literatura de todas as partes do mundo, então, quando era criança, na minha pequena ilha de Reunião, eu li Jorge Amado. Sei que a literatura de Jorge Amado tem lá seus problemas, mas tive contato com ela ainda muito pequena. Em Reunião, temos também uma pratica que se assemelha muito à capoeira, tocada com instrumentos de Madagascar, que tem similaridades no som e no formato com os que foram levados para o Brasil por escravizados. Então, sempre tive ligações com o país, mesmo sem nunca ter visitado ou muito antes de conhecer o feminismo brasileiro. Adulta, como militante, me manifestei contra as ditaduras do Chile e do Brasil. Depois, quando trabalhei na editora Maison des Editions de Femmes, fui ao Chile, a El Salvador, à Colômbia para colher depoimentos sobre a ditadura. Hoje, leio muito sobre o que se passa no Brasil, sobre o horrível personagem que está no poder. Li escritores e feministas como Djamila Ribeiro, Joice Berth, que conheci durante uma mesa redonda em Paris, e escrevi o prefácio do mais recente livro de Djamila lançado na França. Espero ir ao Brasil um dia.
MC Como vê o mundo pós-pandemia?
FV Vai acontecer um empobrecimento massivo, e as pessoas negras são as que vão perder o trabalho, principalmente as mulheres. Acredito também que haverá mais violência, como já acompanhamos, e também grande destruição, como no início do ano, quando vimos florestas na Austrália e no Brasil queimando. Estamos mesmo à beira de um abismo. Precisamos fazer um enorme movimento para mudar isso. Desde o começo da pandemia, empresas como a Amazon ganharam muito dinheiro. Em Paris, o número de entregadores se multiplicou por dez, e são apenas jovens negros explorados e subpagos. Vamos suportar esse tipo de sociedade? Por causa do distanciamento, não é possível fazer manifestações. O teletrabalho dificulta a organização de sindicatos. Existe uma frase capitalista que diz: "Não há nada melhor do que uma crise para fazer as coisas avançarem". Nunca vimos as pessoas dizerem: "Ah, eu tenho muitos privilégios, vou abrir mão deles". Então, haverá companhias que vão demitir muito. O capitalismo digital vai se multiplicar. Ao mesmo tempo, as lutas contra o racismo e de povos autóctones contra a destruição vão se tornar mais fortes. Vivemos um momento muito importante, cheio de perigos, mas também repleto de oportunidades. Na França, por exemplo, nunca vi tantas greves de domésticas e trabalhadoras de hotéis. Não vai ser fácil, mas temos de lutar.
Fonte: Revista Marie Claire