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Economia do cuidado e educação feminista: caminhos na garantia dos direitos das mulheres


Crise global do cuidado

O feminismo se formou ao longo da história por diferentes concepções, vertentes, ondas, lutas e pesquisas. O feminismo é algo dinâmico, plural e ao mesmo tempo unitário como busca pela emancipação das mulheres. Nas últimas décadas houve um aumento significativo nas lutas feministas com cada vez meninas mais jovens querendo debater a diversidade dessas demandas sociais, políticas e econômicas. Pensar a origem do patriarcado na história é refletir sobre diferentes tipos de violências sofridas pelas mulheres. Sobretudo mulheres negras, indígenas e pessoas LGBTQIA+, pois o sistema patriarcal se aliou com o capitalismo e o racismo e permanecem unidos até hoje na perpetuação das explorações-opressões.


Por essa razão a escolha do objeto de análise a ser feita por esse texto foi o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2023. Este exame tem como objetivo a realização de uma prova de admissão à educação superior realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, vinculado ao Ministério da Educação do Brasil.


A frase-tema da proposta de redação chama a atenção, causou polêmicas e nos permite várias reflexões: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. A partir desse tema as/os candidatas/os deveriam escrever um texto dissertativo-argumentativo numa perspectiva social, científica, cultural ou política com uma proposta de intervenção ao final de preservação e promoção dos Direitos Humanos.


Foram selecionados 4 textos de apoio para realização da redação. O primeiro que era o documento da OXFAM sobre a relação do cuidado com a crise da desigualdade; o segundo em que apresentava a diferença de horas dedicadas ao cuidado entre homens e mulheres do site do IBGE; a terceira que era um texto do IPEA onde tratava da sobrecarga do trabalho do cuidado às mulheres; e o quarto era uma capa da revista da FAPESP de 2021 onde abordava o aumento da demanda atual do cuidado nos sistemas de atenção à população. 


O trabalho do cuidado, se entendido como como prestação de cuidados, mobiliza pensarmos como ele ocorre objetivamente de forma não-remunerada e remunerada. Independente da forma, o fato é que o cuidado é uma dimensão humana, de que todas/os nós necessitamos em diferentes momentos da vida, enquanto seres sociais e dependentes.


Atualmente o tema do cuidado passa por uma situação de crise global (OIT, 2019) devido a déficits na quantidade e qualidade da prestação de cuidados, a chamada crise de cuidado (OIT, 2019). A presente crise de cuidado se soma a outras crises que o capitalismo vem provocando, devido à sua própria lógica de funcionamento, a chamada crise estrutural do capital (MÉSZAROS, 2008). Essa crise, que atinge o mundo do trabalho, a família, a escola, as relações sociais e a natureza também diz respeito ao sentido que se tem atribuído a respeito do trabalho do cuidado, suas características e formas de organização em todo mundo.


No que tange à Economia do cuidado (CARRASCO, 2011) como um setor de estudos e ativismo político, que permeia diferentes áreas do conhecimento para além da Economia, há a possibilidade de entender a engrenagem de toda a sociedade, de forma macro e microssocial, na medida em que se baseia, de acordo com relatório da OIT (2019), no ciclo entre trabalho do cuidado não-remunerado-trabalho remunerado-trabalho do cuidado remunerado. 


Dessa forma quando pensamos nas crescentes necessidades de prestação de cuidados pelo mundo e em quais condições são prestados esses serviços, destacamos dois tipos de classificação das atividades do cuidado de acordo com a OIT (2019), que são: atividade de trabalhos diretos, pessoais e relacionais; e atividades de trabalho indiretos, como realizar tarefas domésticas.





De acordo com a OXFAM (2020), em seu relatório “tempo de cuidar: o trabalho do cuidado não-remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade”, é por meio do envelhecimento da população, da falta de investimentos públicos em serviços de cuidado, das mudanças nas estruturas familiares e das crises climáticas que se expressam as necessidades, demandas e ofertas de cuidado. E isso em termos monetários, quer dizer que a economia do cuidado movimenta o equivalente a 10,8 trilhões por ano, três vezes mais que o setor de tecnologia. (OXFAM, 2020).


A teoria feminista sobre economia do cuidado (CARRASCO, 2011) nos mostra que esse conceito é multidimensional e polissêmico e que pode e deve ser analisado de forma interdisciplinar pela Sociologia, Direito, Enfermagem, Psicologia, Educação e outros setores. 


Outro conceito que nos interessa muito é o de cadeias globais de cuidado. Arlie Hochschild (2000) coloca como são as mulheres migrantes dos países mais pobres que vão para países mais ricos e assim, na sua maioria mulheres, vão deixando suas famílias e o trabalho do cuidado no seu local para desempenhar as tarefas de trabalho doméstico em outras famílias. Fraser (2016) chama isso de déficit de cuidado o que ocasiona no chamado Global Heart Transplant (transplantando o afeto). A autora mostra como o amor e o cuidado se tornaram o novo ouro a ser explorado. O que difere da exploração de outros recursos é que esse não é extraído a força, pelo contrário é uma forma de criação de consensos e manipulação emocional que torna tudo mais sutil, ainda que a perversidade na essência não apareça.


A família segue sendo o espaço onde é mais intenso o trabalho do cuidado, especialmente para as mulheres. É necessário reivindicar cada vez mais que o Estado assuma a sua responsabilidade pelo cuidado.


Nesse sentido, compreendemos que quando abordamos a categoria cuidado não estamos mais separando em “cuidado de si” como da psicologia; “cuidas dos outros” como da sociologia; “cuidar do planeta” como da economia, biologia ou política. (VIEIRA, 2018) Estamos falando de uma abordagem que recupere diferentes construtos teóricos que englobam todas essas dimensões de forma interligada.



Educação Feminista

Como podemos avançar nas lutas feministas através da educação? Que metodologias, técnicas, projetos, didáticas, materiais, conteúdos, objetivos estão presentes na educação feminista dentro e fora dos espaços formais de educação? Como construir a sociedade do cuidado (HIRATA, 2022) através da educação feminista em um contexto de perseguição de professoras/es por suposta “ideologia de gênero”? Como abordar o tema dos Direitos humanos em uma sala de aula em condições materiais extremamente precarizadas e professoras/es absurdamente adoecidas/os?


Tendo em vista essa breve contextualização da proposta da redação desse exame de tamanha importância no nosso país, outros questionamentos no âmbito educacional são importantes: em que medida a juventude (e qual juventude) têm acesso a um repertório teórico e prático sobre economia do cuidado e feminismo? Nas escolas particulares, onde estão jovens que têm mais acesso e mais privilégios sociais e econômicos, discute-se feminismo e trabalho do cuidado? Na escola pública há professoras e professores com formação para atuar nas diferentes pautas da educação feminista?





No entanto, ao nos depararmos com as mudanças na sociedade advindas da luta das mulheres, podemos perceber o quanto avançamos quando visibilizamos um tema tão pouco debatido. Avançamos com a diversidade da população tendo mais acesso a esse tema, ainda que de forma limitada. Isso mostra o importante papel de continuarmos pensando estratégias político-pedagógicas articuladas entre Universidade, escola e movimentos sociais para garantia de direitos de todas as pessoas, sobretudo para os grupos oprimidos historicamente, como é o caso das mulheres.


O recorte feito aqui é direcionado ao feminismo principalmente na escola e em espaços formais de educação. Mas é muito importante reafirmar que a educação feminista acontece em diferentes espaços, dentre eles os não-formais, principalmente ligados aos movimentos sociais feministas, que pensam métodos, técnicas, sensibilidades e abordagens para superação do sistema capitalista, patriarcal e racista. 


A educação feminista se encontra com a economia e a política na medida em que reivindica não só uma mudança na estrutura patriarcal, mas também na estrutura do racismo e do capitalismo. A escola segue sendo um laboratório de atuação da classe e dos grupos dominantes de implementação do seu projeto ideológico educacional. 


Por essa razão apesar do avanço do tema estar em uma prova de tanto alcance como o ENEM, o feminismo quer ir além de estar em uma prova como conteúdo de uma redação pontual, pois a educação feminista quer radicalmente mudar não só o conteúdo das avaliações, mas as próprias avaliações e o sentido do educar. Ou seja, o feminismo tem sido mais acessado, sem dúvida, mas para ocorrer de fato a popularização do conhecimento científico feminista é necessário uma união programática entre as diferentes áreas do conhecimento e as diferentes profissões, juntamente com a comunidade escolar para pensar a relação entre universidade, escola e movimentos sociais na construção de uma sociedade do cuidado (HIRATA, 2022) - aquela em que a lógica da vida e das relações não são os lucros, mas o cuidar de si, do outro, da natureza.








Conheça a autora:



Mãe-cientista, doutoranda e mestra em Educação, socióloga, professora e militante feminista








Referências

CARRASCO, Cristina; BORDERÍAS, Cristina; TORNS, Teresa (Ed.). El trabajo de cuidado: historia, teoria y políticas. Madrid: Catarata, 2011. 

HIRATA, Helena. O cuidado: teorias e práticas. São Paulo, Boitempo, 2022.

HOCHSCHILD, Arlie. R. Global care chains and emotional surplus value. In: GIDDENS, A.; HUTTON, W. (Eds.). On The Edge Living with Global Capitalism. New York, Random House, 2000, pp.130-146. 

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2008.


Relatório da OXFAM tempo de cuidar: o trabalho do cuidado não-remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade acesso em 13/12/2023 https://www.oxfam.org.br/publicacao/tempo-de-cuidar-o-trabalho-de-cuidado-nao-remunerado-e-mal-pago-e-a-crise-global-da-desigualdade/

Relatório da Organização Internacional do Trabalho: “Trabalho e emprego na economia de cuidado para o futuro do trabalho decente” https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_633464/lang--pt/index.htm - acesso em 13/12/2023.

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